Neurolis - Clínica de Neurologia e Neurofisiologia

A Epilepsia

Existem diversas definições de epilepsia (umas clínicas, outras neurofisiológicas), que podem, no entanto, ser sintetizadas na de Henry Gastaut, que diz “epilepsia é uma afeção crónica de diversas etiologias, caracterizada pela repetição de crises devidas a uma descarga neuronal excessiva (crises epiléticas) associadas eventualmente a sintomas clínicos”.

Portanto, uma crise única não é sinónimo de epilepsia, tal como as crises acidentais ligadas a situações agudas (convulsões febris, encefalite, traumatismo cranioencefálico, insuficiência renal) também o não são.

Esta é uma noção importante, visto que um doente pode sofrer de crises epiléticas graves e frequentes durante uma doença cerebral aguda e não voltar a ter mais crises durante o resto da vida. A noção de epilepsia implica, pois, a recorrência de sintomas ao longo de meses ou anos.

A epilepsia tem uma prevalência de aproximadamente 1% da população a nível mundial, sendo considerada a doença neurológica mais frequente. A incidência anual de novos casos diagnosticados rondará os 5-10 % deste valor.

É importante notar que a crise epilética comporta uma evidência neurofisiológica, traduzida no eletroencefalograma (EEG), e uma evidência clínica, que pode ser a ausência, a convulsão, etc. Este último aspeto é fundamental, pois na maior parte dos casos não são encarados como doentes epiléticos as pessoas que apresentam apenas alterações inespecíficas no EEG.

São imemoriais as primeiras referências históricas à epilepsia, doença conhecida já no Antigo Egipto (3000 anos a.C.). Às ligações iniciais com a histeria e outros estados mórbidos relacionadas na época com o deslocamento do útero, sucedeu-se o carácter “sagrado” desta doença, muito desenvolvido pelos gregos que acreditavam ser possível a comunicação das sacerdotisas com os deuses, quando estas proferiam os seus oráculos no meio das convulsões.

É Hipócrates, na sua monografia sobre “a doença sagrada”, o primeiro a identificar como sede da doença o próprio cérebro tentando, neste como em outros aspetos da Medicina, estabelecer princípios científicos sobre a patologia. Tanto os hebreus como os romanos mantiveram a ligação da doença a forças extranaturais, sendo-lhe atribuída nomes diversos como “doença dos demónios”, “morbus insputatus”, pois era prática cuspir nos doentes como medida preventiva para se proteger da doença, e ainda “mal comicial”, devido ao facto dos comícios romanos serem interrompidos de cada vez que um dos participantes tinha uma crise convulsiva, encarada como um sinal divino. O termo “comicialidade”, uma herança desses tempos, perdura até hoje na terminologia médica.

É Avicena quem primeiro emprega o termo “Epilepsia”, que significa em grego “ser apoderado” ou “ser possuído”. Este autor continua, no entanto, a relacionar a doença com forças sobrenaturais. A idade média não trouxe qualquer esclarecimento adicional sobre a doença, sendo esta frequentemente relacionada com a bruxaria e os doentes queimados por heresia.

Só no século XIX se assiste a uma progressiva alteração destes conceitos, sobretudo através da escola francesa da Salpêtrière. Primeiro com Georget, depois Briquet, Charcot, Babinski e Gowers, assiste-se nessa altura a um rápido desenvolvimento de diversos conceitos relacionados com a epilepsia e também a uma modificação na sua abordagem terapêutica.

Data de 1857 a primeira utilização de um fármaco com alguma eficácia no controlo das convulsões. Foi Sir Charles Locock, obstetra da Rainha Victória, o primeiro a utilizar os brometos na epilepsia, que constituíram até ao final da primeira década do século XX a única terapêutica disponível. A introdução em 1912 do fenobarbital, em 1937 da fenitoína e em 1952 da carbamazepina foram, até à década de 70, outros passos importantes no controlo médico da doença.

A um estado quase letárgico no desenvolvimento de novos medicamentos até essa altura, sucedeu-se o aparecimento progressivo, no último quartel do século XX, de inúmeros fármacos, cada vez mais eficazes e com menos efeitos acessórios, o que permite hoje em dia que o doente com epilepsia tenha à sua disposição um manancial terapêutico extremamente eficaz. Além do mais, e aproveitando a “década do cérebro”, a epileptologia, enquanto ramo das ciências neurológicas, apresentou um desenvolvimento ímpar, quer no que respeita ao conhecimento dos mecanismos básicos, quer aos meios complementares de investigação e às soluções terapêuticas.

Apesar deste longo caminho, e de todo o interesse que a doença tem causado ao longo dos séculos, ainda hoje persiste uma incompreensão generalizada em relação ao doente com epilepsia, sendo frequentes, como todos sabemos, os preconceitos com que estes indivíduos se deparam ao longo da sua vida.

O diagnóstico de uma Epilepsia é fundamentalmente clínico e os meios complementares habitualmente utilizados, como sejam o EEG, a tomografia computorizada (TC CE) ou a ressonância magnética (RMN CE), servem para uma melhor caracterização da situação e avaliação da sua etiologia. As crises epiléticas, tal como o seu nome indica, têm em comum uma característica especial, que é o seu aspeto crítico: início e final bruscos, curta duração – poucos segundos ou minutos. São igualmente estereotipadas em cada doente. As crises de longa duração (superiores a 15-20 minutos) não são geralmente de origem epilética.

Há ainda que ter em conta que a sintomatologia pode ser extremamente variada, desde a clássica convulsão tónico-clónica até alterações da consciência, breves e pouco evidentes, passando ainda por diversos fenómenos sensoriais, como sejam alterações gustativas, olfativas ou visuais. No entanto, as queixas frequentemente referidas pelos pais de crianças em idade escolar de que estas se apresentam distraídas, irrequietas ou com mau aproveitamento escolar, não correspondem na grande maioria das vezes a crises epiléticas.

Faz-se habitualmente uma divisão dos quadros de epilepsia em epilepsias generalizadas (quando as alterações apresentadas são logo de início generalizadas aos 2 hemisférios cerebrais) e epilepsias parciais (se essas alterações estão apenas localizadas a uma região particular do cérebro).

Em relação às crises generalizadas, as mais frequentemente encontradas são as convulsões tónico-clónicas (que se caracterizam por perda súbita de conhecimento, contração tónica dos músculos dos 4 membros, depois abalos clónicos, por vezes mordedura de língua e emissão de urina) e as ausências, durante as quais o doente fica parado, apresentando por vezes alguns movimentos discretos das pálpebras ou dos lábios, com recuperação muito rápida. Estas últimas podem ser muito frequentes, por vezes mais de 20-30 por dia.

As crises parciais podem ou não ser seguidas de convulsão tónico-clónica (neste caso diz-se que são secundariamente generalizadas). A sua classificação habitual é feita consoante o local de origem da atividade epilética, distinguindo-se habitualmente as crises dos lobos temporal, frontal, parietal e occipital. As crises do lobo temporal são as mais frequentes, constituindo aliás o síndroma epilético mais comum, e a sua expressão clínica pode por vezes ser confundida com uma ausência.

No que diz respeito aos grupos etários de idade escolar, existem situações específicas que se encontram com alguma frequência, apresentando uma relação importante com a idade de apresentação (epilepsias da infância, da adolescência), existindo em algumas delas uma base genética conhecida, enquanto que em outras essa identificação não foi ainda efetuada.

Regra geral, numa hipótese diagnóstica de epilepsia, é importante não só a diferenciação entre os diversos tipos de crises epiléticas, como também o diagnóstico diferencial entre estes quadros e crises não epiléticas. Estas situações são diversas, incluindo os problemas cardíacos e circulatórios, as doenças metabólicas, a enxaqueca, os distúrbios do sono e as pseudoconvulsões, encontrando-se frequentemente na clínica e colocando por vezes problemas diagnósticos de difícil resolução.

Como já referido, os exames mais frequentemente efetuados são o electroencefalograma e os estudos de imagem (TC CE e RMN CE), podendo ser realizados estudos mais aprofundados em ambas as áreas.

O tratamento da epilepsia passa inicialmente pela utilização de fármacos, hoje em dia mais eficazes e mais seguros do que o que eram há vários anos atrás. Calcula-se que cerca de 60 a 65% dos novos doentes fiquem controlados com qualquer um dos fármacos anti-epilépticos de 1ª linha em monoterapia.

Os restantes doentes são geralmente tratados em regime de politerapia, com dois ou mais fármacos, existindo, no entanto, um grupo importante de doentes que, quer devido às características da sua epilepsia quer devido a problemas farmacodinâmicos ou farmacocinéticos das associações com que são tratados, apresentam situações de epilepsia refratária.

Para alguns destes doentes refratários existe uma hipótese cirúrgica, cuja investigação é habitualmente efetuada em centros de referência (existem vários em Portugal).

A repercussão desta doença sobre a criança ou o adolescente em desenvolvimento e em idade escolar depende de diversos fatores, nomeadamente do tipo de epilepsia/crises, das suas características e frequência, da existência ou não de outras lesões subjacentes, da resposta à terapêutica e ainda do tipo de fármaco utilizado.

Os medicamentos utilizados apresentam por vezes alguma repercussão sobre determinadas atividades cognitivas, muito embora em relação aos mais recentes (e também os mais utilizados na criança e no adolescente) essa repercussão seja muito menor.

Todo este avanço, na compreensão dos mecanismos básicos, na capacidade de investigação clínica e ainda no controlo do doente com epilepsia, com diminuição franca dos efeitos secundários classicamente associados, vem trazer a este grupo de doentes uma melhoria considerável da sua qualidade de vida, da sua prestação pessoal, familiar, social e profissional, o que se traduz obviamente por uma economia de outros recursos e por um aumento da sua produtividade enquanto elementos ativos de um tecido social.

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